segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Estamira e a loucura. Ou o que é a loucura?


por Tomazio Aguirre - retirado do site Overmundo

Vou tentar responder rapidamente a uma pergunta que poucas pessoas que ainda gostam de compreender as coisas têm se feito, já que as ciências aplicadas, como psiquiatria, psicologia e antropologia, têm se restringido a retóricas em torno dos temas que abordam, à medida que se concentram em pequenas disputas de poder institucionais e preciosismos pessoais. A pergunta é: O que é a loucura? E, mais particularmente, o que é a loucura no Brasil?


Vou tentar responder usando um documentário muitíssimo instrutivo, de Marcos Prado, chamado Estamira, sobre uma mulher louca (oficialmente esquizofrênica) moradora de um lixão no Rio de Janeiro.

Para começar, esqueçam o lugar-comum: a crença mundialmente difundida de que a loucura é uma doença do cérebro, de nome esquizofrenia, e a crença de que quem dela entenderia seriam os psiquiatras ou profissionais da “saúde mental”. Alguns poucos, raríssimos profissionais, sim, ainda se esforçam para não serem apenas cegos num tiroteio, mas a maioria deles não entende nada sobre loucura. São apenas práticos, prescritores de remédios ou de terapias vazias, mas sem compreender a essência daquilo com o que lidam. Também os antipsiquiatras, psicólogos e antropólogos têm se convertido apenas em ilusionistas, ideólogos, às vezes bem intencionados, que querem salvar o mundo, começando pelos loucos, mas pouco entendendo daquilo a que se referem. Apenas tentam arregimentar seguidores, e muitas vezes conseguem. O Brasil é um país de messiânicos.

Curiosamente, fui surpreendido pelo documentário Estamira, que é justamente interessante por não apresentar voz de narradores ou especialistas da psiquiatria, da saúde mental, da psicologia ou da antropologia brasileira abrindo a boca para explicar o que estava sendo mostrado. O documentário é apenas a voz de uma louca se auto-explicando, e explicando o mundo que a fez ser como é, e no qual ela vive do jeito que é possível: bruta, enraivecida, solitária, sofrida, que prefere viver no meio do lixo, cercada de outros restos humanos como ela, do que com sua família; vendo o mundo como um lugar de violência, conspirações, barbaridades, falsidades, genocídio, em que cada um tem que ser seu próprio herói, seu próprio deus, seu próprio mito e seu próprio guia, auto-construindo seu próprio sentido de vida; porque tudo o mais além do que a própria pessoa pode inventar para si mesma são mentiras que a levarão no máximo a uma vala comum de indigentes, de bandidos ou de loucos humanizados, medicados e intolerados.

Sei que após a década de 1960 loucura passou a ser sinônimo de "rebeldia", de "transgressão", de "desbunde", de "porralouquice", e muitos bem-nascidos passaram a ter um certo prazer em se auto-denominar ou se exibir como loucos, diferentes, extravagantes, viajandões, rebeldes, etc. Mas não é a este deleite burguês que me refiro como loucura.

Estou aqui falando da loucura trágica, da loucura catástrofe, da loucura fim-de-mundo, da loucura que leva um sujeito a se desesperar e a viver em um mundo delirante próprio, solitário, correndo pelas ruas e rejeitando a vida com os demais seres humanos, e sendo ao mesmo tempo rejeitado por todos, como seres indesejáveis e insuportáveis. Loucura esta que a Estamira do documentário expressa aos berros, sem ter sido silenciada por drogas, caridade, psicologias, polícia ou assassinato - que é o fim que tem levado a maioria dos milhões de loucos reais desse país. Mas curioso é que, por ser o Brasil um país que não se civilizou, Estamira conseguiu escapar a todas essas armadilhas modernas para os inadaptados, sobrevivendo sem ser silenciada e ainda indo parar em um filme. Trágica contradição deste país moribundo: apenas no caos a loucura tem voz própria. A Alemanha não deixou nem mesmo Nietzsche continuar berrando audivelmente depois de ter se tornado oficialmente doido. Mas aqui os loucos conseguem fugir ao controle dos "normais".

Essa loucura real, de loucos reais, subumanos, e não dos desejosos de serem artistas ou transgressores em suas "modinhas" intelectuais, é a solidão extrema e total a que o ser humano pode chegar; é quando tudo que existe aos olhos de todos os outros deixa de fazer sentido, só restando à pessoa reinventar solitariamente seu próprio mundo, sua própria crença, seus próprios fantasmas, seus próprios ídolos míticos, sua própria identidade, a par de todos, diferentemente de todos os outros em suas ilusões compartilhadas coletivamente.

A Estamira do filme foi uma mulher brasileira comum até o período da vida em que a sucessão de atos típicos do caos nacional a levaram a não mais conseguir acreditar e sentir o mundo como ela fazia até então, com valores morais cristãos, acreditando em um Deus bom, protetor e coerente, sendo boa mãe, cordial, limpa, educada, contida e auto-controlada. Mas quando a realidade do caos ao seu redor desnudou todas essas suas fantasias morais e ilusões de um mundo que não mais existia, ela tornou-se uma pessoa sem "mundo" no qual acreditar: perdeu seus valores e suas ilusões necessárias à vida compartilhada com outras pessoas, e não conseguiu ter novas ilusões (crenças, ou sentidos para a vida), no lugar das anteriores. Ao contrário, em seu mundo anterior à loucura, a brutalidade real da vida brasileira não podia existir, e quando esta brutalidade foi escancarada em sua vida, sucessivamente, com estupros, violências e caos sem coerência, ela tornou-se uma pessoa sem um mundo dotado de sentido. Ela tornou-se um vazio existencial completo, um ser amorfo, com restos de identidades fragmentadas, com resquícios de valores morais contra os quais agora passava a lutar, por sabê-los irreais, com restos de crenças em Deus e coisas do tipo das quais agora tinha apenas raiva - por ter se descoberto uma pessoa enganada quanto a si mesma e quanto ao mundo real, brutal, caótico, genocida, no qual o ser humano não tem valor algum, a não ser em jogos de palavras hipócritas, com falsos humanismos – ou seja, o típico mundo da pobreza urbana brasileira, cercado de violênicia e de intelectuais humanistas.

Assim amorfa, aos olhos dos outros ela tornou-se louca, alguém a quem não se dá crédito, a quem não se compreende, com quem não se consegue compartilhar opiniões e crenças. Se lhe dessem ouvido, e se compreendessem o que ela fala, somado ao que falam os milhões de loucos brasileiros que não têm voz (por isso são loucos aos olhos dos outros), e sobre os quais não se faz filmes, viria à tona a realidade de um país e de um mundo de que a maioria da população não quer saber - preferindo todos continuar vivendo em seus estragados castelos de areia. Viria à tona um país brutal, catastrófico, apocalíptico, um povo se auto-destruindo e ainda tendo que se acreditar alegre, carnavalesco e humanista-cristão. Quem quiser ver este país, no entanto, basta apenas parar de assistir a Matrix, de jogar vídeo-game, de fumar maconha, e assistir a Estamira; e, principalmente, basta abrir os olhos e a mente para o que está ao seu redor - se conseguir. O Brasil apocalíptico de Estamira está escancarado. Pena que os cristãos e humanistas brasileiros vão apenas achar o filme bonito, com boa fotografia, com uma personagem cativante e digna de ser celebrada como pobre e excluída, por quem se deveria lutar ardorosamente por "inclusão social" e dignidade. Mas isto é apenas parte da ilusão dos que querem coletivamente continuar sonhando com um país que não existe e nunca existirá.

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